Avanço interpretativo justifica a insegurança?
A decisão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) no julgamento do Recurso Especial nº 1.495.920/DF, causou entusiasmo na comunidade jurídica ao reconhecer, por maioria, um contrato de mútuo celebrado e assinado eletronicamente como título executivo extrajudicial. A grande questão é que neste contrato não houve a assinatura de duas testemunhas, tal como exigido pelo Código de Processo Civil (“CPC”) para que o título seja imediatamente passível de execução.
Antes mesmo da publicação do acórdão, diversos artigos foram veiculados enaltecendo a decisão da Terceira Turma do STJ e alguns chegaram a defender a possibilidade incondicionada de se executar contratos eletrônicos sem a assinatura das testemunhas.
A questão, contudo, deve ser tratada com a cautela que merece, tendo em vista que o necessário avanço interpretativo das normas deve vir acompanhado da igualmente imprescindível segurança jurídica.
O caso em questão
A execução de título extrajudicial proposta pela Fundação dos Economiários Federais (“FUNCEF”) foi extinta ainda em Primeira Instância, sem a resolução do mérito, por falta de assinatura de duas testemunhas, tal como preconizado pelo artigo 585, II, do CPC/73 (correspondente ao atual artigo 784, III, do CPC).
A sentença terminativa foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios que, embora tenha reconhecido a validade do contrato e das assinaturas eletrônicas por certificação digital, destacou a taxatividade do rol de títulos executivos extrajudiciais e afirmou que a assinatura eletrônica das partes “não produz a eficácia de um título executivo extrajudicial, pois ausente um requisito essencial do tipo aberto do inciso II do art. 585 do CPC, qual seja, a assinatura de duas testemunhas”. A FUNCEF interpôs Recurso Especial sustentando que o contrato de mútuo executado é título executivo extrajudicial e apresenta “todos os requisitos necessários, inclusive duas formas de testemunhos – o primeiro, o registro do ICP-Brasil[1] e o segundo no Comprova.com, que confirma a contratação e, ainda, guarda a comprovação”.
Entendimento (não unânime) da 3ª Turma do STJ
O Ministro Relator Paulo de Tarso Sanseverino, ao tratar do contrato eletrônico assinado digitalmente, posicionou-se no sentido de que “há de se ter tal instrumento de contratação como executivo, porque reiteradamente celebrado nos dias atuais, e ainda, por corporificar obrigação de pagar líquida, certa e exigível e, especialmente, porque fazem as vezes das testemunhas a certificação pelo ICP e, ainda a utilização dos serviços do ‘Comprova.com’”.
Ainda que o rol de títulos executivos extrajudiciais deva ser interpretado restritivamente, o Ministro Relator reconheceu que “a assinatura digital realizada no instrumento contratual eletrônico mediante chave pública (…) tem a vocação de certificar – através de terceiro desinteressado (autoridade certificadora) – que determinado usuário de certa assinatura digital privada a utilizara e, assim, está efetivamente a firmar o documento eletrônico e a garantir serem os mesmos os dados do documento assinado que estão a ser enviados”.
O Ministro Relator também destacou que o STJ já vinha reconhecendo a executoriedade de contratos físicos em que a assinatura das duas testemunhas tenha ocorrido em momento posterior ao ato da celebração do negócio.
O voto vencido
O entendimento, entretanto, não foi unânime. Embora tenha concordado com o Ministro vencedor no tocante ao fato de que “o ordenamento jurídico brasileiro ainda se encontra em descompasso com as revoluções tecnológicas vivenciadas na atualidade”, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva concluiu que “não há como atribuir ao contrato que instrui a inicial da execução a qualidade de título executivo extrajudicial sem extrapolar, em muito, os limites da legislação vigente”, não sendo razoável atribuir à parte executada o ônus de comprovar a invalidade de um documento que “não preenche minimamente os requisitos legais para dar início a um gravoso processo de execução”.
De qualquer modo, a Terceira Turma do STJ, por maioria, reconheceu no caso concreto o contrato eletrônico de mútuo, sem a assinatura de duas testemunhas, como título executivo extrajudicial.
Modernos meios de celebração dos negócios e o papel das testemunhas
Não há dúvidas de que o CPC em muitos aspectos não reflete a realidade do mundo atual, tendo o Legislador perdido a oportunidade de endereçar várias questões atuais de relevo. Em uma sociedade predominantemente digitalizada, a exigência de que os instrumentos contratuais, para serem considerados títulos executivos extrajudiciais, estejam necessariamente assinados por duas testemunhas, de certa forma cria obstáculos aos modernos meios de celebração de negócios, que têm ocorrido cada vez mais à distância e eletronicamente, mantendo um requisito (ou óbice) desnecessário ao uso da via executiva.
Não podemos ignorar, todavia, que as testemunhas existem por uma razão. A rigor, o seu papel é justamente o de garantir segurança e efetividade aos contratos celebrados, de modo a pessoalmente certificar a ocorrência e veracidade do ato e, sobretudo, a existência ou não de vício na formação do contrato, tal como a eventual supressão da vontade de uma das partes contratantes. Por isso, a presença física das testemunhas, no momento da celebração do instrumento contratual, se fez e ainda se faz relevante[2].
Por outro lado, é inegável que atualmente existem outros mecanismos aptos a cumprir o papel das testemunhas, como atas de reuniões, trocas de e-mails e outras formas de comunicação, como mensagens eletrônicas através de aplicativos. Essas novas formas de comprovação de validade do instrumento a ser executado acabam justamente por tornar questionável a utilidade das testemunhas e sua manutenção como requisito imprescindível à configuração de um instrumento contratual como título executivo extrajudicial. Esse ponto foi, inclusive, bem abordado pelo acórdão, que acertadamente relembrou que nos dias atuais são raras as oportunidades em que as partes se reúnem para a assinatura de um contrato, do mesmo modo que é ainda mais raro estarem as testemunhas presentes nesse mesmo ato, sem que isso retire o seu caráter de título executivo extrajudicial[3].
Necessária cautela quando da aplicação do acórdão como precedente
Apesar de proferida poucos anos após a entrada em vigor do atual CPC, o acórdão do STJ representa uma mudança de paradigma, pois, em alguma medida, reflete a ânsia da sociedade por uma evolução legislativa com relação aos modernos meios de celebração dos negócios. Porém, a sua aplicação, ou sugestão de aplicação, nesse momento, não é segura, especialmente pelos riscos processuais e econômicos envolvidos.
De plano já se pode questionar a legitimidade dessa decisão. É bem verdade, como diz o acórdão, que “nem o Código Civil, nem o Código de Processo Civil se mostraram totalmente permeáveis à realidade negocial vigente e, especialmente, à revolução tecnológica que tem sido experienciada no que toca aos modernos meios de celebração de negócios”, mas é igualmente válida e verdadeira a premissa de que essa matéria é de competência do Poder Legislativo.
Não obstante exista uma forte tendência em flexibilizar a linha que separa a atribuição de cada um dos três poderes, sendo cada vez maior a liberdade de atuação de um dos poderes em relação aos demais, como se vê no julgamento do Recurso Especial Repetitivo n° 1.704.520 que trata do rol de hipóteses do Agravo de Instrumento, o fato é que o STJ não possui, em tese, competência para ampliar ou admitir hipóteses não previstas na lei.
Ora, se a sua intenção é interpretar e aplicar a lei, suprindo as lacunas que passaram despercebidas ao Legislador quando da elaboração do CPC, e considerando o atual cenário social e jurídico em que vivemos, deveria o STJ ter instaurado um dos mecanismos previstos no próprio CPC – como o Incidente de Assunção de Competência ou o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, se fosse o caso – a fim de uniformizar e, mais importante, gerar segurança jurídica sobre o assunto.
Isso porque o acórdão foi proferido de forma isolada pela Terceira Turma do STJ, não atendendo aos requisitos do artigo 927 do CPC[4], de modo que os juízes e Tribunais não estão obrigados a aplicar o entendimento firmado no respectivo acórdão. Mesmo não sendo a primeira vez que o STJ reconhece a força executiva de um documento particular sem a assinatura de testemunhas, a sua jurisprudência é bastante dividida com relação ao tema[5]. Há, por todos os tribunais do país – inclusive no próprio STJ – decisões nos mais variados sentidos, o que acaba apenas por alimentar maior insegurança aos jurisdicionados e aos Tribunais de instâncias inferiores.
Considerando que se trata de questão com grande repercussão social e, sem dúvidas, que traz risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, a utilização dos mecanismos presentes no CPC teria se mostrado muito mais eficiente no sentido de estabelecer isonomia entre os jurisdicionados, uma vez que o efeito vinculante[6] da decisão proferida em tais incidentes traria maior certeza aos jurisdicionados acerca do entendimento do STJ quanto à questão da exequibilidade, ou não, de contratos eletrônicos sem a assinatura de duas testemunhas. E mais do que isso, a decisão proferida no âmbito de tais incidentes poderia ter os seus efeitos modulados visando garantir ainda maior segurança jurídica e isonomia aos jurisdicionados.
Certamente, o novo CPC já nasceu velho em diversos pontos, pois deixou de disciplinar importantes aspectos da realidade do mundo atual. Todavia, se de um lado não é dado ao STJ legislar, de outro, cabe àquele Tribunal Superior, enquanto casa uniformizadora da jurisprudência, valer-se dos mecanismos previstos na lei processual para viabilizar a aplicação uniforme do seu entendimento.
Enquanto não houver a devida uniformização, não haverá qualquer garantia de que os juízes e demais órgãos fracionários do Poder Judiciário seguirão o entendimento do acórdão em comento, sendo que os maiores prejudicados, em tese, serão aqueles que, confiando no julgamento proferido pelo STJ, ingressarão com execuções fundadas em contratos assinados eletronicamente, sem a presença das respectivas testemunhas e estarão sob o iminente risco de extinção de sua execução e de eventual pagamento de verbas sucumbenciais, tudo a depender de um isolado posicionamento do STJ.
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[1] Infraestrutura de Chaves Públicas, instituída pela MP 2.200/01.
[2] Nas palavras de Fredie Didier Jr.: “A finalidade de o documento particular, para ser título executivo, contar com a assinatura de duas testemunhas, (…) é justamente convocá-las a testemunhar em juízo, caso o devedor alegue algum vício de vontade nos embargos à execução. Daí por que devem as testemunhas, no documento particular, ter presenciado sua elaboração e não estarem sujeitas às restrições legais relativas às testemunhas judiciais. Do contrário, ou seja, caso as testemunhas não desfrutem dessas qualidades, o documento particular não será título executivo extrajudicial, que somente poderá ser aferido, na hipótese de haver embargos à execução em que se alegue o vício e caso não haja prejuízo com tal defeito” Curso de Direito processual Civil, vol. 5, 7ª ed., Salvador: JusPodivm, 2016, pp. 297/298.
[3] “2. De acordo com a jurisprudência desta Corte, “o fato de as testemunhas do documento particular não estarem presentes ao ato de sua formação não retira a sua executoriedade, uma vez que as assinaturas podem ser feitas em momento posterior ao ato de criação do título executivo extrajudicial, sendo as testemunhasmeramente instrumentárias” (REsp 541.267/RJ, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, Quarta Turma, DJ de 17/10/2005; AgInt no AREsp 1.183.668/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 1º/03/2018, DJe de 09/03/2018).” (AgInt no AREsp 807883/MT, Rel. Ministro Lázaro Guimarães, julgado em 07/08/2018, DJe de 13/08/2018)
[4] Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
[5] “PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.
CONTRATO CONFISSÃO DE DÍVIDA. AUSÊNCIA DE ASSINATURA DE DUAS TESTEMUNHAS. TÍTULO EXECUTIVO. INEXISTÊNCIA.
- O instrumento particular de acordo, reconhecimento e confissão de dívida, sem assinatura de duas testemunhas, não atende o requisito do art. 585, II, do CPC, ainda que a origem do crédito relacione-se com contrato de locação.
- Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no AREsp 83.779/PR, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 23/02/2016, DJe 02/03/2016)
“AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FUNDADA EM CONTRATO DE EMPRÉSTIMO DE DINHEIRO. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. CABIMENTO. INSTRUMENTO PARTICULAR COM AUSÊNCIA DA ASSINATURA DE DUAS TESTEMUNHAS. EXECUTIVIDADE AFASTADA. DECISÃO MANTIDA. RECURSO NÃO PROVIDO. (…) 2. O acórdão recorrido, ao não considerar como título executivo o contrato não assinado por duas testemunhas, alinhou-se à jurisprudência deste Tribunal Superior, incidindo na espécie o óbice da Súmula 83 do STJ.”
(AgInt no AREsp 1114517/SP, Rel. Ministro Lázaro Guimarães, Quarta Turma, julgado em 14/11/2015, DJe de 21/11/2017)
[6] Previsto nos artigos 947, §3º, 985 e 987, §2º, todos do CPC.
Fonte: AARB