A Ação de Repetição do Indébito, muito comum no Processo Judicial Tributário assim como as ações de Embargos à Execução Fiscal, Mandado de Segurança, Consignação em Pagamento, Anulatória de Débito Fiscal e Declaratória de Inexistência de Relação Jurídico-Tributária, tem como objetivo reaver um valor que foi pago indevidamente ao Fisco, seja uma parte desse valor ou seu valor integral, desde que esse pagamento tenha se dado de forma indevida.
Não obstante a isso, o mais comum é a ação de repetição do indébito ser proposta cumulada com outras ações como ação de consignação em pagamento e ação declaratória. Outro exemplo é que em alguns casos ainda que o contribuinte tenha logrado êxito em sede de Mandado de Segurança, será necessário propor a ação de repetição do indébito, tendo em vista que o Mandado de Segurança não gera efeitos retroativos, mas apenas da data da sua impetração em diante (Súmulas 269 e 271 do STF).
Agora, quando falamos da repetição do indébito, muito se é necessário tecer algumas considerações no que se refere à legitimidade para sua propositura, isto é, a legitimidade ativa, detalhe esse muito importante quando se trata desse tipo de ação. Nesse sentido, quem possui a legitimidade para propor a repetição é o contribuinte de direito, no entanto existe uma discussão na doutrina se o contribuinte de fato também poderia tê-la, pois em alguns casos é ele quem acaba suportando o ônus, ou seja, é ele quem paga de fato o tributo e não o contribuinte de direito, um exemplo disso é no caso dos locatários. Suponhamos então que uma igreja ou um partido político alugue um determinado imóvel e, conforme previsto no contrato de locação, é de responsabilidade do locatário pagar o IPTU. Logo, o ônus de pagar por aquele tributo neste caso recairá sobre o contribuinte de fato e não sobre o contribuinte de direito, mas existe um porém, tanto as igrejas como os partidos políticos gozam de imunidade tributária, conforme dispõe o art. 150, inciso IV, alínea “b” e “c” da Constituição Federal de 1988, assim, se as igrejas e os partidos políticos, na figura de locatários, são quem estão realmente pagando o imposto, portanto, arcando com o ônus, por que eles não podem ser parte legítimas para requererem, por meio de uma ação de repetição do indébito, a restituição dos valores pagos indevidamente ao Fisco nos exercícios anteriores? E se isso fosse possível, seria possível ainda fazer essa legitimidade do contribuinte de fato se estender para o Mandado de Segurança, visto que primeiro seria necessário, neste caso, impetrar um Mandado de Segurança para extinguir a cobrança e depois uma repetição do indébito para restituir os valores pagos anteriormente?
Bem, com base nas lições do professor Kiyoshi Harada, esse locatário não pode ser parte legítima para propor a repetição do indébito porque ele é só um locatário, ele não faz parte da relação tributária com o Fisco, ou seja, quem é o sujeito passivo dessa relação jurídico-tributária é o proprietário do imóvel, ora locador, e não o locatário. De acordo com o professor grande parte da doutrina e da jurisprudência busca o fundamento da ação de repetição no princípio que veda o enriquecimento ilícito, mas na verdade o tributo indevido, exigido ou pago voluntariamente, deve ser restituído em virtude do princípio da legalidade tributária, pois “esse princípio impõe a reposição do solvens no statu quo ante sempre que constatado o pagamento sem fundamento na lei. (…) Se pago a mais do que devido por lei, o contribuinte tem o direito de repetir o pagamento, acrescido de juros e correção monetária; se pago a menos do que determina a lei, o contribuinte tem a obrigação de completar o pagamento, acrescido de juros, correção monetária e multa, ressalvada quanto a esta última a hipótese do art. 138 do Código Tributário Nacional. Daí porque a legitimidade para propor a ação só poderia ter quem foi parte na relação jurídica tributária, e não o consumidor final, também conhecido como contribuinte de fato, ou seja, aquele que suportou o encargo do tributo, o qual nenhuma obrigação tem perante o fisco e, consequentemente, nenhum direito tem diante da Fazenda Pública, que sequer o conhece.” (Harada, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 30th edição. Grupo GEN, 2021).
Não obstante, sobre a ótica da situação hipotética, Eduardo Muniz Machado Cavalcanti explica em seu livro Processo Tributário: Administrativo e Judicial, que “ainda que por legítima convenção particular entre locador e locatário tenha sido ajustada a transferência do encargo, a ausência de previsão no ordenamento jurídico-tributário permissiva da repercussão econômica inviabiliza a imposição do ajuste de natureza privada ao Fisco e, por consequência, a legitimidade ativa do locatário para postular a repetição de indébito de IPTU” (Cavalcanti, Eduardo Muniz M. Processo Tributário: Administrativo e Judicial. Grupo GEN, 2022).
O IPTU é um imposto direto, mas outro ponto que gera maiores discussões quanto à legitimidade da ação de repetição do indébito é em relação aos impostos indiretos no contexto do artigo 166 do Código Tributário Nacional. Em análise ao CTN, verifica-se que o pagamento indevido é previsto no capítulo que trata da extinção do crédito tributário, em uma seção exclusiva que vai dos artigos 165 ao 169, logo depois das modalidades de extinção e do pagamento. O art. 165 já dispõe, em síntese, que “o sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial do tributo, seja qual for a modalidade do seu pagamento.”, repare que o próprio caput do artigo menciona a expressão “sujeito passivo”, ele só não completa dispondo que trata-se do sujeito passivo da relação jurídico-tributária, portanto, por ora, já vale fixar que para impostos diretos se aplica o art. 165. Contudo, conforme mencionado é o art. 166 que na prática gera maiores controvérsias, tal dispositivo assim dispõe: “a restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.”
Recordemos que muito embora não exista definição legal do que seja tributo direto e indireto, entende-se que o primeiro corresponde aos tributos que recaem sobre a pessoa, sobre seu patrimônio e renda, e os indiretos recaem não sobre o que a pessoa tem, mas sobre o que ela produz. Por exemplo, uma empresa de construção civil TEM algum imóvel no nome dela? Se tiver, ela vai pagar um tributo direito, qual seja, IPTU ou ITR a depender de onde se localiza esse imóvel, se é na zona urbana ou rural, mas se essa mesma empresa de construção civil “PRODUZ” imóveis, ou seja, ela presta serviços na edificação de imóveis, então ela vai pagar um tributo indireto, qual seja, o imposto ISSQN que, aliás, nesses casos será retido no município onde esses imóveis estão sendo construídos, pois lembre-se, empresa de construção civil é exceção à regra. Além disso, os tributos indiretos, além de recaírem sobre a produção/circulação de serviços, eles também recaem sobre a circulação de mercadorias. De forma resumida, só no que se refere aos impostos (sem adentrarmos nas outras espécies de tributos), de um total de 12 que nós temos hoje em vigência, 05 são diretos (ITR, ITCMD, IPVA, IPTU e ITBI), e 07 são indiretos (II, IE, IR, IPI, IOF, ICMS e ISS), esse último também pode ser direto conforme o caso concreto, segundo entendimento do STJ e STF.
Mas, superada tal premissa, por que o artigo 166 do CTN acaba dificultando um pouco a vida do contribuinte? Vamos pegar como exemplo o ISSQN – Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza. Suponhamos que uma empresa prestadora de serviços que presta serviços que se enquadram devidamente na lista anexa à LC 116/03 – lei Complementar essa que trata do ISS, foi contratada por uma empresa do ramo de mineração para prestar serviços em todas as unidades da empresa, localizadas em várias cidades do País. Ocorre que, a empresa terceirizada, ora contratada, entendendo ser correto o recolhimento do ISS no município onde se encontra estabelecida, faz o recolhimento do mesmo por lá. Por sua vez, a empresa mineradora, ora contratante, fez a retenção do ISS com o pagamento do imposto aos municípios em que a contratada prestou o serviço. Diante disso, a contratada propõe então uma ação de consignação em pagamento cumulada com ação declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária e pedido sucessivo de repetição do indébito.
O juiz “a quo” acolhe parcialmente os pedidos requeridos pela contratada, ora prestadora do serviço, determinando que aquele município onde ela se encontra estabelecida é o município competente para reter o ISS. Recorde-se que, na contramão, a jurisprudência do STJ vem entendendo que não é o município onde a empresa está estabelecida, mas onde o serviço está sendo prestado, in verbis: “a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de que em se tratando de fato gerador do ISSQN ocorrido na vigência da lei Complementar 116/03, o sujeito ativo da relação tributária é o município no qual o serviço foi efetivamente prestado.” (REsp 1.619.975/SP, julgado em 14/9/22). Tal decisão não é acertada, pois se no exemplo mencionado acima o juiz “a quo” em vez de acolher os pedidos da prestadora de serviço acolhesse os pedidos dos municípios em que a mesma prestou serviço, estaríamos diante de uma bitributação, ou seja, ela teria que pagar o ISS sobre o mesmo fato gerador para vários entes públicos, bitributação essa que não tem amparo em lei.
Abrindo aqui um parêntese, o Fisco pode alegar que isso é um exemplo de evasão fiscal, no sentido de que a contratada se aproveita dessa divergência das legislações municipais e dos entendimentos jurisprudenciais para reduzir sua carga tributária ao emitir a nota fiscal para o município que não é, em si, competente para recolher o ISS? Sim, ele pode, mas a empresa não está praticando uma evasão fiscal se coincidentemente o município em que ela está estabelecida é o que tem a alíquota menor.
Superado tal ponto, voltando-se na decisão do juízo “a quo” da situação hipotética, foram julgados parcialmente deferidos os pedidos da prestadora de serviço, pois no que se refere ao pedido de repetição do indébito, o mesmo foi indeferido tendo em vista a falta de provas. Bem, é nesse ponto quanto às provas que consiste uma questão relevante quando tratamos da hipótese de propositura da ação de repetição do indébito.
Primeiro que nessa situação hipotética constata-se que o ISS assume um caráter de imposto indireto (lembre-se que ele também pode ser direto), mas nesse caso ele é indireto porque quando a contratada emitiu a nota fiscal de serviço, a base de cálculo do ISS foi o preço do serviço, tanto que o valor que corresponde ao ISS já sai na nota fiscal, permitindo, assim, o repasse desse encargo financeiro ao tomador do serviço. Ou seja, o ISS assume natureza de imposto indireto quando ocorre do prestador de serviço recolher o valor do imposto e o repassar, com a inclusão do valor que ele pagou de ISS no preço total do serviço, para a tomadora do serviço ou o consumidor. Assim, quem suportou o encargo financeiro no fim das contas foi à tomadora, a contribuinte de fato e não o contribuinte de direito, portanto, ele é um imposto indireto.
Logo, a sistemática a ser observada é a do art. 166 do CTN, segundo a qual a restituição do tributo só será feita a quem provar ter assumido o encargo financeiro ou que foi autorizado pelo terceiro responsável a recebê-la. Inclusive toda essa linha de raciocínio foi desenhada pelo Superior Tribunal de Justiça, em um julgamento paradigmático, afetado ao rito dos recursos repetitivos representativos de controvérsia, de Relatoria do Ministro Luiz Fux, em 2009 (REsp 1131476/RS). Desse modo, seria necessário então que a prestadora do serviço provasse nos autos que ela arcou com esse pagamento indevido feito pela tomadora aos municípios que ela prestou serviço.
Na prática, ao propor a repetição do indébito, o contribuinte faz devidamente, anexo à inicial, a juntada de toda a documentação pertinente ao caso como a procuração, substabelecimento, a documentação de identificação do advogado, o registro digital da Junta Comercial, o contrato social da empresa, o contrato de prestação de serviços, as notas fiscais que a empresa emitiu, entre outras documentações pertinentes, porém nessas situações em que além da tomadora ter feito a retenção do ISS, como também a prestadora já havia feito e, inclusive, repassado o encargo no valor total do serviço para a primeira, qual a prova cabível para se comprovar tais pagamentos indevidos? O ideal é a tomadora do serviço propor a repetição do indébito já que foi ela que no fim das contas pagou tanto pelo ISS retido pela prestadora, como também pela retenção que ela própria fez? Bem, mas ela é contribuinte de fato, e contribuinte de fato não tem legitimidade para propor repetição.
Portanto, observemos que as discussões acerca de tais temáticas merecem cada vez mais reflexões, tendo em vista, ainda, situações muitas vezes complexas que ocorrem na prática. Não obstante, a priori podemos entender que já há um entendimento sedimentado de que se tratando de tributos diretos como o IPTU, por exemplo, a legitimidade ativa cabe somente ao contribuinte de direito, essa questão podemos entender por superada, o que não significa, é claro, que a mesma não pode ser motivo de maiores discussões futuramente. Agora, a controvérsia mesmo ainda vai continuar sendo debatida quando tratar-se de tributos indiretos, não é à toa que boa parte da doutrina não vê com bons olhos o art. 166 do CTN como Ives Gandra da Silva Martins, Hugo de Brito Machado Segundo e o próprio Kiyoshi Harada, citado no início deste artigo.