Os dispute boards na nova lei de licitações e contratos administrativos

O objetivo dos dispute boards é evitar, em tempo real, a partir de uma visão privilegiada e sempre atual do andamento do contrato, que a disseminação de disputas prejudique o desempenho das partes ou drene os recursos necessários à sua execução.

1. A adoção dos dispute boards na LLCA

Em 1º de abril de 2021 foi sancionada a lei 14.133, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (“LLCA”).1 A LLCA, em seu capítulo XII, “Dos meios alternativos de resolução de controvérsias”, artigos 151 a 154, expressamente reconheceu, pela primeira vez em nível federal, a legalidade da utilização de dispute boards como meio alternativo de prevenção e resolução de controvérsias. In verbis:

“CAPÍTULO XII

DOS MEIOS ALTERNATIVOS DE RESOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS

Art. 151. Nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem.

Parágrafo único. Será aplicado o disposto no caput deste artigo às controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, como as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações.

Art. 152. A arbitragem será sempre de direito e observará o princípio da publicidade.

Art. 153. Os contratos poderão ser aditados para permitir a adoção dos meios alternativos de resolução de controvérsias.

Art. 154. O processo de escolha dos árbitros, dos colegiados arbitrais e dos comitês de resolução de disputas observará critérios isonômicos, técnicos e transparentes.”

Os dispute boards foram aqui, acertadamente, nominados como comitê de resolução de disputas e, assim, poderão tratar de quaisquer questões envolvendo direitos patrimoniais disponíveis em contratações públicas, como, por exemplo, as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações.

O objetivo dos dispute boards é evitar, em tempo real, a partir de uma visão privilegiada e sempre atual do andamento do contrato, que a disseminação de disputas prejudique o desempenho das partes ou drene os recursos necessários à sua execução. Tal é a relevância dada na LLCA aos dispute boards que se permite a sua adoção imediata mesmo a contratos já em curso, por meio do necessário aditamento.

Os dispute boards são compostos por três profissionais, cuja escolha observará critérios isonômicos, técnicos e transparentes. De modo geral, é recomendável que as partes indiquem painel que possa combinar profissionais de perfil mais técnico, com conhecimento específico sobre as características do projeto, e profissionais com perfil jurídico, que possam ajudar na interpretação das cláusulas e até mesmo colaborar na condução dos trabalhos do comitê, muitas vezes escolhido para presidi-lo.

2. A complexidade e os riscos inerentes a projetos complexos: A importância dos dispute boards

Os contratos de construção e projetos de infraestrutura são contratos comutativos complexos. As características inerentes desse modelo muitas vezes exigem que as obrigações se iniciem sem que tenha havido o completo detalhamento dos custos envolvidos, do projeto de engenharia e do grau de responsabilidade e risco assumido pelas múltiplas partes hipóteses. Assim, quanto maior o número de incertezas maior a probabilidade de instalar-se uma situação de conflito e concretizar-se a máxima de que as disputas são uma realidade inexorável na indústria da construção: Death, Tax and Claims.2

Por exemplo, estudos desenvolvidos pela Oxford University com dados coletados nas três Américas, África, Europa, Ásia e Oceania, três em cada quatro projetos de hidrelétricas sofrem aumentos de custos da ordem de 96% e mais de 80% deles sofrem atrasos de quase 50% em relação ao prazo originalmente previsto. De acordo com o mesmo estudo, quando se amplia o objeto da pesquisa para projetos de infraestrutura em geral, nada menos do que 90% dos projetos de valor original superior a US$ 1 bilhão sofrem aumento de custos de pelo menos 50% e atrasam significativamente.3

O desejo de prevenir disputas em projetos de infraestrutura vem de longa data e levou à busca de novas formas de resolução de disputas que permitissem prevenir conflitos e favorecer a boa marcha da execução do projeto, preservando os prazos previstos e o orçamento a ele destinado, ainda, sem que isso necessariamente implicasse na suspensão ou no esgarçamento da relação entre as partes. Nesse contexto, surge o primeiro registro do uso de dispute boards, durante a construção da Boundary Dam, no estado de Washington, nos EUA, na década de 60. Na ocasião, as partes estabeleceram um Joint Consulting Board, ativo durante todo o contrato, para a emissão de opiniões não vinculantes sobre os conflitos apresentados.

Na década seguinte, as conclusões do US National Committee on Tunnelling Technology (1972) sobre as causas de sobrecustos em projetos de infraestrutura levaram à publicação de um importante estudo,4 que atualizou e expandiu as informações do US National Committee on Tunnelling Technology sobre as causas de sobrecustos. Ainda, incluiu a recomendação da adoção de comitês de acompanhamento independentes, nos moldes do Joint Consulting Board, para o acompanhamento do andamento de contratos. Essa recomendação foi prontamente adotada na década seguinte, já com a denominação de dispute boards, durante a construção do Túnel Eisenhower, também nos EUA, no estado do Colorado.

Os excelentes resultados obtidos pelo dispute board no Túnel Eisenhower levaram à difusão de sua prática nos EUA e no mundo como comitês de prevenção e solução de disputas com o propósito de prevenir o surgimento e o escalonamento de conflitos durante a execução de contratos, principalmente aqueles que envolvem projetos grandes e complexos. Entre 1982 e 1986, o projeto internacional de grande porte da hidrelétrica El Cajón Dam, em Honduras, cuja empreiteira era italiana, o engenheiro era suíço e cuja contratante, a Companhia de Eletricidade de Honduras, não possuía experiência em contratos de tal complexidade, utilizou-se de um dispute board, através de previsão contratual, devido à exigência do Banco Mundial, financiador da obra, dando início à adoção desses comitês em obras internacionais.

Assim, a partir de 1995 o Banco Mundial passou a exigir dispute boards em projetos com valor de financiamento superior a 20 milhões de dólares5. Em 1996 a Federation Internationale des Ingenieurs Conseils (FIDIC) passou a incluir dispute boards como método preferencial para a resolução de disputas. Finalmente, em 1996 foi criada a Dispute Resolution Board Foundation (DRBF), uma organização sem fins lucrativos, dedicada à promoção da prevenção e resolução de disputas em todo o mundo pela utilização de dispute boards, congregando os principais profissionais em atuação no mercado6.

As estatísticas da Dispute Resolution Board Foundation (DRBF) revelam que aproximadamente 97% das divergências surgidas ao longo de um contrato que utilize dispute board são resolvidas no seu âmbito, evitando a necessidade de recurso à arbitragem ou ao Judiciário. A DRBF também aponta a identificação oficial de quase 2340 projetos no mundo que já tenham utilizado dispute boards com valor global estimado em mais de 166 bilhões de dólares.7

3. As modalidades de dispute boards

O momento da formação dos dispute boards define algumas de suas características mais importantes: (i) o “dispute board permanente” é o constituído no momento da celebração do contrato ou em prazo imediatamente posterior à sua celebração, permanecendo ativo durante toda a vigência do contrato, independentemente da existência ou não de uma controvérsia; e (ii) o “dispute board ad hoc” é o formado somente quando da ocorrência de uma controvérsia formalmente submetida pelas partes, permanecendo ativo até a prolação da decisão e o exaurimento dos procedimentos a ela aplicáveis.

O teor vinculante das decisões caracteriza as principais modalidades de dispute boards: (i) Dispute Review Boards (DRBs) são os que emitem recomendações, ou seja, decisões de adoção não obrigatória; (ii) Dispute Adjudication Boards (DABs) são os que emitem decisões, estas de adoção obrigatória; e (iii) os Combined Dispute Boards (CDBs) são os que combinam os tipos anteriores, emitindo recomendações e decisões, de acordo com a situação que lhes é submetida.

Nos Dispute Resolution Boards, a solução proposta é uma mera recomendação e carece de aceitação de ambas as partes para produzir efeitos como acordo amigável. Diferentemente, nos Dispute Adjudication Board as partes estipulam que a decisão proferida é vinculativa, só podendo ser alterada por acordo estabelecido entre as partes ou por decisão proferida em processo judicial ou arbitral, conforme o caso. Contudo, cada parte pode informar a outra do seu descontentamento em relação à decisão proferida pelos membros do painel. Assim, se esta comunicação não existir, a decisão pode tornar-se vinculativa e definitiva para ambas as partes (interim-binding force).

4. A evolução dos dispute boards no Brasil

No Brasil, a Linha 4 – Amarela do Metrô de São Paulo é considerado o projeto pioneiro da adoção de dispute boards no país. Com este importante precedente, outros exemplos se seguiram, em vários estados do Brasil. Com este importante precedente, imposto por força do o Banco Interamericano para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), um dos financiadores do projeto, outros exemplos se seguiram, em vários estados do Brasil.

Ainda, o Conselho da Justiça Federal, na “I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios”, sob a Coordenação Geral do ministro Luis Felipe Salomão, emitiu três enunciados sobre os dispute boards, evidenciando o respeito do Poder Judiciário pelo instituto: (i) Enunciado CJF 49: “Os Comitês de Resolução de Disputas (Dispute Boards) são método de solução consensual de conflito, na forma prevista no § 3° do art. 3º do Código de Processo Civil Brasileiro.”; (ii) Enunciado CJF 76: “As decisões proferidas por um Comitê de Resolução de Disputas (Dispute Board), quando os contratantes tiverem acordado pela sua adoção obrigatória, vinculam as partes ao seu cumprimento até que o Poder Judiciário ou o juízo arbitral competente emitam nova decisão ou a confirmem, caso venham a ser provocados pela parte inconformada.”; e Enunciado CJF 80: “A utilização dos Comitês de Resolução de Disputas (Dispute Boards), com a inserção da respectiva cláusula contratual, é recomendável para os contratos de construção ou de obras de infraestrutura, como mecanismo voltado para a prevenção de litígios e redução dos custos correlatos, permitindo a imediata resolução de conflitos surgidos no curso da execução dos contratos.”8

O artigo 44-A da lei 12.462, de 4 de agosto de 2011, que instituiu o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC) – adicionado pela lei 13.190, de 19 de novembro de 2015 -, constitui importante permissivo legal para a adoção de dispute boards.9

Os centros de solução de controvérsias têm um papel fundamental para o desenvolvimento dos dispute boards no Brasil. À semelhança das regras de arbitragem, a menção a um regulamento específico deve ser feita nas cláusula de resolução de disputas dos contratos. Usualmente as regras trazem cláusulas prevendo as obrigações dos membros do dispute board, das partes, formas e prazos para a submissão de consultas e controvérsias, orientações em relação à cobrança de honorários e outras regras fundamentais para dar segurança e previsibilidade tanto para a atuação dos profissionais escolhidos para compor o dispute board quanto para as partes em relação ao seu relacionamento com os membros do dispute board e à mecânica do seu funcionamento.10

O Município de São Paulo, por meio da lei 16.873, de 22 de fevereiro de 2018, de forma pioneira, reconheceu e regulamenta a instalação de dispute boards em contratos administrativos continuados celebrados pela Prefeitura de São Paulo, que poderão ter natureza revisora, adjudicativa ou híbrida.11 A lei 16.873/2018 foi recentemente regulamentada pelo decreto 60.067, de 10 de fevereiro de 2021, que reconheceu e reforçou o caráter informal e a oralidade inerentes aos dispute boards, a fim de possam atender às demandas de solução de controvérsias de modo rápido e eficaz, aspecto tão relevante para que se mantenha a continuidade da execução de contratos complexos.

No âmbito federal há, ainda, ao menos dois projetos de lei em andamento. Em primeiro lugar, o PL 206/2018, do Senado Federal, de autoria do Senador Antonio Anastasia (PSDB/MG), que “dispõe acerca da instalação de Comitês de Prevenção e Solução de Disputas para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis em contratos administrativos continuados que menciona, firmados pela administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. Também o PL 9883/2018, da Câmara dos Deputados, de autoria do Pedro Paulo (PMDB-RJ), que dispõe sobre o uso dos dispute boards em contratos administrativos.

5. A esterilização de disputas como objeto principal dos dispute boards

Os dispute boards acompanham o desenvolvimento da execução do contrato, sendo dado aos seus membros conhecer o contrato, anexos e demais informações pertinentes à negociação havida entre as partes. No caso de contratos de construção e projetos de infraestrutura, por exemplo, os membros do dispute boards tornam-se, desde cedo, familiarizados com os valores acordados, o programa de inspeções e testes, as regras para o comissionamento e emissão de certificados de aceitação provisória (CAPs) ou final (CAFS), as condições de pagamento e fórmulas de reajuste, os documentos de engenharia (projetos, plantas, campanhas de sondagem, relatório diário de obras, etc) e, assim, acompanham in loco o próprio avanço físico das obras.

Os dispute boards intervêm de modo rápido e tempestivo, na sua prevenção ou resolução, apresentando às partes uma visão independente sobre a interpretação das cláusulas contratuais, a adequada divisão de responsabilidades entre as partes, bem assim o detalhamento de questões técnicas e legais inerentes a uma relação comutativa de maior complexidade.

É justamente no alto potencial de adaptabilidade às condições das partes e às demandas contratuais, bem assim no maior grau de criatividade no detalhamento de seu funcionamento que os dispute boards contribuem, de modo efetivo, para a prevenção e resolução de disputas, mostrando-se imprescindíveis no auxílio das partes na execução dos contratos e eficiente utilização dos recursos a eles destinados.

Muito bem-vinda, portanto, a iniciativa do legislador federal de reconhecer a importância dos dispute boards e incorporá-los na nova LLCA, como instrumentos de apoio às partes, assim como ao juízo ou aos tribunais arbitrais, em busca da prevenção e esterilização de disputas no âmbito público.

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1 PL 4.253/2020, substitutivo da Câmara dos Deputados ao PL do Senado Federal 559, de 2013, PL 6.814, de 2017, naquela Casa.
2 Conforme conceito apresentado por Júlio César Bueno, em artigo publicado em 2015.
3 “Should we build more large dams? The actual cost of hydropower megaproject development”, Antif Ansar et alli, Journal of Energy Policy, vol. 69, Junho/2014, University of Tennessee, p. 43-56. “What you should know about megaprojects and why: an overview”, Bent Flyvbjerg, Project Management Journal, vol. 45, nº 2, John Wiley and Sons, 2014, p. 6-19.
4 National Academy of Ciencies Council, Better Contracting for Underground Construction National Committee on Tunneling Technology, Wash., D.C. PB-236 973, Nov 1974.
5 Exigência constante do Standard Bidding Document for Procurement of Works para os projetos considerados como “major works”, publicado pelo Banco Mundial em 2012.
6 Para maiores informações: clique aqui.
7 Dr Harmon, K, 2012, “Using DRBs to Maintain Control of Large, Complex Construction Projects”, Dispute Resolution Journal, Vol 67, No 1.
8 Para maiores informações: Clique aqui.
9 “Art. 44-A. Nos contratos regidos por esta Lei, poderá ser admitido o emprego dos mecanismos privados de resolução de disputas, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, e a mediação, para dirimir conflitos decorrentes da sua execução ou a ela relacionados.”
10 Os mais tradicionais conjuntos de regras de dispute boards disponíveis são os da DRBF, da Câmera de Comércio e Indústria de Paris (CCI) e da FIDIC. São, ainda, referências internacionais as regras da American Arbitration Association (AAA), do Chartered Institute of Arbitrators (CIArb), da Royal Institution of Charteres Surveyors (RICS) e do Institute of Civil Engeneers (ICE). Na América do Sul já temos também ótimos regulamentos, por exemplo os Câmara de Arbitragem de Santiago (CAM Santiago), CAM-CCBC e CBMA, dentre outros.
11 “Art. 2º O Comitê de Prevenção e Solução de Disputas poderá ter natureza revisora, adjudicativa ou híbrida, conforme os incisos deste artigo, a depender dos poderes que lhe forem outorgados pelo contrato administrativo de obra celebrado: I – ao Comitê por Revisão é conferido o poder de emitir recomendações não vinculantes às partes em litígio; II – ao Comitê por Adjudicação é conferido o poder de emitir decisões contratualmente vinculantes às partes em litígio; e III – o Comitê Híbrido poderá tanto recomendar quanto decidir sobre os conflitos, cabendo à parte requerente estabelecer a sua competência revisora ou adjudicativa. Parágrafo único. As decisões emitidas pelos Comitês com poderes de adjudicação poderão ser submetidas à jurisdição judicial ou arbitral em caso de inconformidade de uma das partes.”

Fonte: Migalhas

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