Considerações sobre a lei 14.046/20 e a atividade empresarial caracterizada como setor cultural

O que se buscou com a edição da medida provisória 948/20 posteriormente convertida na lei 14.046/20 foi justamente a proteção da economia como um todo, razão pela qual as diversas atividades empresarias devem ser contempladas na norma e não somente aquelas elencadas na alínea II do art. 3º.

O cenário econômico vem sofrendo com fortes mudanças oriundas das medidas adotadas em função da pandemia causada pelo vírus covid – 19, especialmente no que diz respeito aos setores de turismo e cultura, razão pela qual o Governo Federal editou a medida provisória 948/20, convertida em lei de 14.046/20.

Nos termos da própria lei esta “dispõe sobre medidas emergenciais para atenuar os efeitos da crise decorrente da pandemia da covid – 19 nos setores de turismo e de cultura. ”

Notadamente a intenção legislativa foi criar alternativas para que tais setores pudessem diminuir os impactos gerados em virtude de cancelamento de shows e eventos, apresentando alternativas para remarcação de serviços, reembolso de valores, bem como disponibilização de crédito caso o evento seja cancelado, de modo que empresa possa oferecer outros serviços de interesse do consumidor, conforme explicita o art. 2º da norma, nos seguintes termos:

Art. 2º  Na hipótese de adiamento ou de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, incluídos shows e espetáculos, até 31 de dezembro de 2021, em decorrência da pandemia da covid-19, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não será obrigado a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que assegure: (Redação dada pela Medida Provisória nº 1.036, de 2021)

I – a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados; ou

II – a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas. (…)

Embora a referida lei tenha apresentado medidas que atenuem os impactos da pandemia para os setores de cultura e turismo, nota-se no dispositivo legal uma lacuna quanto à abrangência das empresas cujo gozo dos dispositivos legais é possível.

Isso porque existem inúmeras empresas cujas atividades legais estão relacionadas a atividades culturais e de turismo, mas eventualmente podem não ser entendidas como tais a depender da interpretação que será dada ao art. 3º da lei 14.046/20 que assim dispõe:

Art. 3º  O disposto no art. 2º desta lei aplica-se a:

I – prestadores de serviços turísticos e sociedades empresárias a que se refere o art. 21 da lei 11.771, de 17 de setembro de 2008 ; e

II – cinemas, teatros e plataformas digitais de vendas de ingressos pela internet.

Ressalta-se que a lei 11.771/08 em seu art. 21º dispõe tão somente de atividades relacionadas ao turismo, vejamos:

Art. 21.  Consideram-se prestadores de serviços turísticos, para os fins desta lei, as sociedades empresárias, sociedades simples, os empresários individuais e os serviços sociais autônomos que prestem serviços turísticos remunerados e que exerçam as seguintes atividades econômicas relacionadas à cadeia produtiva do turismo:

I – meios de hospedagem;

II – agências de turismo;

III – transportadoras turísticas;

IV – organizadoras de eventos;

V – parques temáticos; e

VI – acampamentos turísticos.

Parágrafo único.  Poderão ser cadastradas no Ministério do Turismo, atendidas as condições próprias, as sociedades empresárias que prestem os seguintes serviços:

I – restaurantes, cafeterias, bares e similares;

II – centros ou locais destinados a convenções e/ou a feiras e a exposições e similares;

III – parques temáticos aquáticos e empreendimentos dotados de equipamentos de entretenimento e lazer;

IV – marinas e empreendimentos de apoio ao turismo náutico ou à pesca desportiva;

V – casas de espetáculos e equipamentos de animação turística;

VI – organizadores, promotores e prestadores de serviços de infra-estrutura, locação de equipamentos e montadoras de feiras de negócios, exposições e eventos;

VII – locadoras de veículos para turistas; e

VIII – prestadores de serviços especializados na realização e promoção das diversas modalidades dos segmentos turísticos, inclusive atrações turísticas e empresas de planejamento, bem como a prática de suas atividades.

Nesse sentido, um entendimento mais restritivo do art. 3º da lei 14.046/20 nos levaria a crer que as atividades culturais acobertadas pelos benefícios previstos no art. 2º seriam tão somente aqueles discriminadas na alínea II, quais sejam: “cinemas, teatros e plataformas digitais de vendas de ingressos pela internet. ”

No entanto, a aplicação da lei não deve ser tomada de forma restritiva ou taxativa, de modo que a alínea II deve ser entendida como um rol meramente exemplificativo, sendo certo que outras atividades culturais são de igual forma abrangidas pelos benefícios trazidos pela norma em comento.

Propondo uma interpretação teleológica na norma, a leitura da exposição de motivos da MP 948/20 (EMI 00009/2020 MTur MJSP), deixa clara intenção do legislador em preservar o setor de turismo, sendo este o principal setor a ser destacado e preservado dentro da exposição. Contudo, há também nítida intenção legislativa em preservar os prestadores de serviços e sociedades empresárias tanto dos setores de turismo quanto de cultura afetados pelo cenário de pandemia, em especial no item 11 que assim dispõe em seu trecho inicial:

“11. É neste cenário que essa minuta de Medida Provisória propõe que os prestadores de serviços e sociedades empresárias dos setores de turismo e cultura, não tenham obrigatoriedade de reembolsar valores já pagos pelo consumidor, referentes a serviços, reservas e eventos cancelados, em virtude do estado de emergência em saúde internacional decorrente do surto da covid-19 (…) ”

O referido tópico elucida bem o escopo de preservar os prestadores de serviços e as sociedades empresárias dos efeitos causados pela situação pandêmica em que nos encontramos. O que se buscou com a edição da medida provisória 948/20 posteriormente convertida na lei 14.046/20 foi justamente a proteção da economia como um todo, razão pela qual as diversas atividades empresarias devem ser contempladas na norma e não somente aquelas elencadas na alínea II do art. 3º.

A cultura é um direito fundamental assegurado pela Constituição Federal, não podendo este setor ter uma interpretação menos abrangente com relação às atividades beneficiadas pela lei 14.046/20, sendo esta mais uma razão para que se dê uma interpretação extensiva ao art. 3º, II desta norma para que outras empresas além das elencadas nesta alínea gozem dos benefícios se necessário for.

Ainda serão muitas demandas nos Tribunais sobre o tema, especialmente nas relações de consumo em que o consumidor não anuir com as ofertas de crédito ou reembolso em doze meses, mas acredito que caberá ao Poder Judiciário dar a máxima amplitude aos ramos de atividades de cultura e turismo para que os prestadores de serviço e empresários também sejam amparados pela lei 14.046/20.

Fonte: Migalhas

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